Justiça obriga Abin a liberar documentos secretos
LAI faz 13 anos com uma conquista histórica: Justiça derruba o sigilo eterno em ação movida pela Fiquem Sabendo!
No ano passado, neste mesmo 16 de maio, escrevemos com amargura nesta newsletter: “A LAI faz 12 anos, mas o sigilo eterno continua existindo no Brasil.” Tínhamos acabado de perder, em primeira instância, nosso processo contra a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) — mesmo com a lei e a Constituição do nosso lado.
Hoje, um ano depois, podemos comemorar o 13º aniversário da Lei de Acesso à Informação com gosto: depois de seis anos de batalha, vencemos na segunda instância.
Na semana passada, a 6ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) acatou nosso pedido e condenou, por unanimidade, a União e a Abin a entregar um conjunto de documentos mantidos ilegalmente sob sigilo. A ação foi movida ainda em 2020, pela Fiquem Sabendo, com atuação do escritório LimaLaw.
A Justiça reconheceu o que defendemos desde o início: sigilo tem prazo, e vencido esse prazo, a informação deve ser pública. Ponto.
A decisão é unânime. É histórica.
E vem no tempo certo para comemorar o espírito da LAI — uma lei feita para limitar o poder do Estado de esconder o que é público.
É um divisor de águas para a transparência no Brasil.
Que venha o bolo e assoprem as velinhas!
Linha do tempo
2019: Iniciamos o projeto Sem Sigilo, convocando voluntários para pedir documentos cujo prazo de sigilo expirou. Recebemos milhares de páginas de dezenas de órgãos, mas enfrentamos resistência de entidades como Abin, GSI, Ministério da Defesa, Forças Armadas, Polícia Federal e Itamaraty.
2020: Ajuizamos ação contra a Abin. Escolhemos enfrentar o órgão mais resistente à transparência pública porque apostamos: se ganhássemos contra ele, outros cairiam por gravidade.
2021: O MPF acolheu parcialmente nossos argumentos. Sugeriu que a Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência (CCAI), do Congresso, analisasse os documentos. Corretamente, o Congresso se recusou, afirmando não ser sua competência.
2023: Perdemos em primeira instância. A Justiça aceitou o argumento da União de que a Abin poderia decidir sozinha o que divulgar ou não — mesmo contrariando o texto da LAI.
2024: O TRF-1 derrubou a decisão anterior por unanimidade. Reafirmou que sigilo eterno é ilegal. E que, vencido o prazo, a informação é automaticamente pública. Vencemos!
Um passo atrás: do que estamos falando?
Documentos classificados são informações públicas que, por motivos de segurança da sociedade ou do Estado, são temporariamente mantidas em sigilo. A Lei de Acesso à Informação (LAI) estabelece três níveis de classificação:
Reservado: sigilo por até 5 anos
Secreto: sigilo por até 15 anos
Ultrassecreto: sigilo por até 25 anos*
*Ah, mas e o “sigilo de 100 anos”? Explicamos aqui a diferença entre os sigilos permitidos pela LAI (acima) e o que ficou conhecido como “sigilo de 100 anos”.
Apenas autoridades de alto escalão podem classificar documentos. No grau ultrassecreto, por exemplo, somente o presidente e o vice-presidente da República, ministros de Estado e autoridades com prerrogativas equivalentes têm essa competência.
Desclassificação ocorre quando o prazo de sigilo expira, tornando o documento automaticamente público. A LAI determina que, após o término do prazo, a informação deve ser acessível a qualquer cidadão, sem necessidade de novo ato administrativo.
O Termo de Classificação de Informação (TCI) é o documento que formaliza a decisão de classificar uma informação em qualquer grau de sigilo. Deve conter o grau de sigilo, a justificativa, o prazo e a autoridade responsável pela classificação.
O Rol de Informações Classificadas e Desclassificadas é uma lista anual obrigatória publicada por todos os órgãos. Mas serve pouco: ela traz apenas o número de protocolo, as datas de classificação e desclassificação — sem nenhuma indicação de conteúdo.
Sobre o processo de desclassificação, a LAI é clara:
“Transcorrido o prazo de classificação, a informação tornar-se-á, automaticamente, de acesso público.”
Automaticamente. Isso significa que o acesso deveria ser liberado sem necessidade de solicitação — e muito menos por meio de uma ação judicial que, no nosso caso, levou seis anos para discutir 75 documentos por vez.
A lei também prevê que o sigilo possa expirar antes do prazo máximo, caso o evento que motivou a restrição se concretize. Mas esse dispositivo é praticamente inviável: como os TCIs são tarjados pelos próprios órgãos, não é possível verificar o motivo do sigilo — nem pedir a desclassificação antecipada.
Exemplos concretos de interesse público
Entre 2014 e 2020, mais de 400 mil documentos federais perderam o sigilo, segundo dados compilados pela Fiquem Sabendo. Muitos tratam de temas sensíveis — como monitoramento de pessoas, eventos, negociações internacionais e decisões de alto impacto político. Esses documentos, mesmo desclassificados, continuam retidos. Já conseguimos acessar alguns — e eles revelam muito.
Um exemplo emblemático é a reportagem de Eduardo Militão, publicada no UOL, que mostrou que a Polícia Federal se infiltrou em reuniões e monitorou cidadãos durante os protestos de junho de 2013. Esse tipo de ação estatal, quando ocorre sem transparência e sem controle público, fragiliza a democracia.
Órgãos de segurança não podem atuar sem qualquer tipo de controle. Mesmo quando há justificativas para ações de inteligência, elas precisam, em algum momento, passar pelo crivo da sociedade.
Repetem-se, na prática, os padrões da ditadura: informações públicas mantidas sob sigilo por decisão unilateral do Estado e por prazo indeterminado. Esse é exatamente o tipo de abuso que a LAI foi criada para impedir — e por isso fomos à Justiça.
Por que essa decisão importa?
Estabelece jurisprudência: é a primeira decisão em nível federal que reafirma que nenhum órgão está acima da LAI — e que seus prazos não são opcionais.
Cria precedente: o entendimento agora pode ser replicado para cobrar outros órgãos que seguem descumprindo a Lei, como o Itamaraty e as Forças Armadas.
Desmonta o sigilo eterno: reafirma que a transparência é a regra, e o sigilo, a exceção — com prazo.
E agora?
A decisão ainda pode ser contestada pela União — mas o precedente está criado. Seguiremos:
Monitorando o cumprimento da sentença;
Exigindo a liberação dos documentos retidos;
Pressionando o governo a criar uma sistemática para que todas as centenas de milhares de informações desclassificadas que seguem escondidas sejam, enfim, publicadas.
Para o próximo aniversário da LAI: queremos o Portal do Sigilo
Na transição para o governo Lula 3, entregamos ao Grupo de Trabalho de Transparência um documento com propostas para a nova administração:
Dentre as medidas, advogamos pela criação de um sistema público e automatizado para a divulgação de documentos cujo sigilo expirou — nos moldes do Portal da Transparência.
Chamamos essa proposta de Portal do Sigilo. A ideia é simples: no dia em que expirar o prazo de um documento classificado, sua íntegra deve ser publicada automaticamente nesse portal, sem depender de pedido, recurso ou ação judicial.
Queremos virar a lógica atual. Em vez de a sociedade ter que correr atrás do que já é público por direito, cabe ao Estado tornar visível o que já não pode mais ser mantido em segredo. Para que não se precise gastar seis anos de trabalho e recursos para garantir o óbvio.
Uma vitória de todos nós!
Essa decisão é fruto de anos de trabalho contínuo e colaborativo: centenas de pedidos de informação, mobilização de dezenas de volunetários em todo país, advocacy, jornalismo e litigância estratégica.
Ela só foi possível graças à atuação jurídica de Fernando Augusto Martins Canhadas, doutor em Direito, autor da obra de referência sobre a LAI e integrante do Conselho Jurídico da Fiquem Sabendo, que nos representou ao longo de todo o processo.
Também reconhecemos o papel fundamental do jornalista Eduardo Militão, do UOL, autor dos pedidos de acesso que deram origem à ação, feitos durante nossa força-tarefa em 2019.
E, claro, sua. Que nos acompanha, nos apoia e espalha a palavra da LAI com a gente!
Vencemos. Mas precisamos de você para seguir rompendo o silêncio"!
Essa vitória é histórica — mas está longe de ser o fim da luta. Ainda há centenas de milhares de documentos escondidos, e seguimos enfrentando resistência, omissão e silêncio todos os dias.
Se você acredita que transparência é essencial para a democracia, apoie quem está fazendo esse trabalho no front.
Chave PIX (CNPJ): 32.344.117/0001-89
Associação Fiquem Sabendo
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Diretora-Executiva: Maria Vitória Ramos | Diretora de Estratégia: Taís Seibt | Diretor de Advocacy: Bruno Schmitt Morassutti | Diretor de Tecnologia: Vitor Baptista